Na ânsia de satisfazer a imprensa
oficiosa e setores habitualmente motivadores do linchamento público, em
espetáculos pirotécnicos, a norma equiparou o trânsito em julgado a uma
condenação por órgão colegiado.
Com o advento da Lei Complementar nº 135, de 4 de junho de 2010, que
alterou a Lei Complementar nº 64, de 18 de maio de 1990, o país celebrou
a aprovação da figura que foi denominada de “ficha limpa”.
Não se discute - e já vem tarde, a necessidade de lei que permita o
aperfeiçoamento do processo democrático, afastando das urnas os
condenados por crimes e outras irregularidades graves contra direitos
fundamentais e princípios republicanos.
Mas algumas reflexões se impõem para esclarecer e equacionar com
serenidade e equilíbrio alguns postulados que devem nortear o
aprimoramento da sociedade, permitindo-nos legar às gerações futuras um
cenário melhor.
O regime democrático
O Brasil vive um regime democrático, com sufrágio universal, periódico,
isento e com meios eletrônicos de apuração, reconhecidamente, os
melhores do mundo.
Tem esta nação, portanto, motivos para se orgulhar de como se aplica em
solo nacional os mais elevados princípios de convivência social
tolerante e que busca ser igualitária, em seus fundamentos. A
constituição cidadã – como ideal de dever-ser – vivencia experiências
valiosas.
Tais proposições, porém, não podem permitir que forças econômicas
ilícitas distorçam a manifestação da vontade popular e, por via oblíqua,
se sirvam de liberdades para construir valores contra a democracia.
Reconhecidamente, candidatos com campanhas eleitorais patrocinadas por
traficantes, bicheiros e corruptos, devem ter igual tratamento para
serem alijados do direito de votar e ser votado. Se tal ocorrer, que não
se lhes permita vangloriar-se à luz do sol; que tenham a obrigação de
esconder-se das causas que defendem e do patrocínio que tiverem.
É necessário, porém, até para que ainda se possa ostentar o galhardão
de regime democrático, que o afastamento dos direitos da cidadania se
faça com respeito aos postulados fundamentais do Estado Democrático de
Direito.
Sem a garantia da submissão e do veredito final do Poder Judiciário, o
linchamento público de qualquer pessoa não pode ser validado. Sem o
integral atendimento do devido processo legal, nada se legitima.
A função do judiciário
As últimas décadas, no Brasil, revelaram que o Poder Judiciário deixou
de exercer o simples papel de subsunção dos fatos à norma. Em várias
situações, exerceu a função de provocar o Poder Legislativo para o
desempenho da essencial função de legislar.
São célebres no Brasil duas idéias que comumente se repetem: o
Judiciário, mesmo com todas as suas mazelas, ainda é o reduto da
probidade; a função de ser justo, porém, está comprometida por que
Justiça tardia não é justiça.
Se o Judiciário pode iniciar o processo legislativo, falta-lhe um sério
comprometimento no dever de aperfeiçoar minimamente as normas
processuais. Ao contrário, ainda cria recursos regimentais, com redação
obscura e conceitos indeterminados, justificando ainda mais a crítica
que se faz como verdade absoluta no conceito já referido, ao lado da
probidade.
Soma-se a isso a expressiva participação do maior réu do mundo em
número de processos: os órgãos públicos brasileiros e, lamentavelmente,
têm o dever de prover os meios para manutenção e desenvolvimento do
Judiciário, podendo não só manietar qualquer tentativa de não harmonia,
na perspectiva do próprio executivo, como ainda minimizar orçamentos
votados, pela aplicação do instituto da limitação de empenho,
vigorosamente determinado na lei de responsabilidade fiscal.
Solução vergonhosamente brasileira
Apresentando-se a sociedade como a satisfação e solução para afastar do
processo eleitoral os agentes envolvidos nos crimes de corrupção e
outros igualmente repudiáveis, a Lei referida tratou de impedir,
declarando inelegíveis, os que forem condenados, em decisão transitada
em julgado ou proferida por órgão judicial colegiado.
A norma fez tábula rasa do princípio fundamental da inocência até o
trânsito em julgado da decisão. Na ânsia de satisfazer a imprensa
oficiosa e setores habitualmente motivadores do linchamento público, em
espetáculos pirotécnicos, a norma equiparou o trânsito em julgado a uma
condenação por órgão colegiado.
Certamente, não se quis resolver o problema da falta de atuação
tempestiva, nem mesmo melhorar o processo recursal e processual, pelo
cumprimento do dever do legislativo de elaborar normas efetivas e, sob
aspecto técnico, minimamente melhores. Não.
A solução não surpreende. Com todo o vigor do orgulho de ser
brasileiro, assumo a parcela da vergonha de ver como se constroem
soluções para servir de panaceia. Neste país, ao invés de investirmos
contra o analfabetismo, demos aos analfabetos o direito de voto e
esquecemos do problema de fazer cidadãos todos os alijados do dever
estatal básico, elementar e humano de alfabetizar.
Agora, repete-se o mesmíssimo e vergonhoso procedimento: sem resolver o
problema da celeridade, de dar Justiça a todos, de modo eficiente,
multiplicam-se estratégias processuais: criar-se a tutela antecipada,
para que a liminar satisfativa, dada sem o cumprimento do dever do
contraditório, dê Justiça precipitada a uma das partes; permite-se
argüir relevância para a economia, quando o magistrado deveria aplicar o
direito aos que já sucumbiram a experimentos jurídicos, cínico e
econômicos, denominados planos econômicos, com cognomes e alcunhas
tantas e tão diversas. Nesse cenário é absolutamente natural que o
trânsito em julgado seja equiparado a uma decisão colegiada, mesmo que
errada, mesmo que sujeita a embargos de declaração. Note: este recurso
tem objetivo de corrigir contradição, obscuridade ou omissão na decisão.
Portanto, é inegável: mesmo uma decisão com esses vícios todos foi
equiparada a coisa julgada.
As novas perspectivas
Em estudo recente publicado pela Folha de São Paulo atribui-se uma
conotação lamentável: poderosos conseguem atrasar seus julgamentos e,
por via de conseqüência, até manter-se no rol da ficha limpa. Joga-se
para a plateia a idéia da impunidade associada a poder político e poder
financeiro; volta-se ao preconceito de que a prisão, no Brasil, é lugar
para quem esteja em condições menos favorecidas. Ah, sim, sobra para a
categoria dos advogados e uma discutível ética profissional.
A lentidão do Judiciário não é só para esses réus, privilegiados na
estrutura de qualquer tipo de poder. Bem perto do nosso circulo social
se pode encontrar vítimas da lentidão, seja acionando o poder público,
seja processando alguma autoridade de escalão inferior, por abuso, seja
litigando contra uma instituição em liquidação extrajudicial, seja, às
vezes buscando corrigir qualquer injustiça. É comum processos
transitarem por mais de 15 anos.
Há também outros elementos a considerar: Nelson Jobim legou-nos lapidar
síntese que merece vir a balha, “o denuncismo é incompatível com o
regime democrático!”. Quantas vezes magistrados corajosos se deram ao
trabalho de examinar provas e verificar que tal ou qual político
achincalhado e humilhado por escândalos merecia não ser condenado?
Quantas vezes as “provas” não provavam nada e retirada a estória
contada, absolutamente nada se harmonizava com o enredo? Mário Rosa,
jornalista com “J” maiúsculo se especializou em contar essas estórias
depois que viraram história e o tem feito com zelo e extrema
competência. Nas suas obras a elite, suficientemente e minimamente
alfabetizada, pode esclarecer-se e refletir com senso superior de quem
aprecia os fenômenos com o compromisso e responsabilidade com as
perspectivas do mundo futuro que legaremos às gerações futuras.
É inacreditável, mas magistrados e advogados estão agora submetidos a
um novo dever: ter que explicar quando seus posicionamentos divergem da
opinião publicada – note a diferença entre a opinião publicada e a
opinião pública. A satisfação deve ficar no processo, a motivação deve
existir e estar conforme o direito e este deveria estar amparado em
normas que reflitam a ciência do Direito processual e não a vontade que
foi publicada e manietada por alguns veículos da imprensa, que sucumbem
aos compromissos monetários.
A imprensa e a sociedade continuam ansiosas para melhorarem o processo
democrático. A ansiedade não pode ser irresponsável ou precipitada.
No ano que vem teremos novas eleições. Devemos fazer coro com este
anseio de aperfeiçoamento tanto quanto temos o dever de analisar com
serenidade as perspectivas que se apresentam, para que a busca de
soluções não se transforme irresponsavelmente em uma nova norma,
nascendo com a esperança de resolver problemas a qualquer preço.
Não se pode ostentar orgulho da democracia sem o pressuposto lógico e
fático que constitui o Estado Democrático de Direito, as garantias
fundamentais e as funções essenciais a Justiça.
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