ALIENAÇÃO DA FOLHA DE PAGAMENTO: MINISTÉRIO PÚBLICO DO ERJ E O PRINCIPIO DA COMODIDADE ou “Law in action”, !

 Nos últimos anos, Estados, Municípios e até mesmo órgãos da Administração Pública Federal têm firmado contratos com instituições financeiras, visando à efetivação de sua folha de pagamento. Tais operações têm sido chamadas de “alienação da folha de pagamento”, não obstante sejam em geral instrumentalizadas por meio de contratos administrativos de prestação de serviços, antecedidos de procedimento licitatório.
 Numa operação tradicional de prestação de serviços seriam os entes públicos a pagarem aos Bancos por um serviço que estes lhe prestam, qual seja, o de processar o pagamento de seus servidores e, em tal situação, estaríamos diante de uma despesa cujo ritual deveria seguir processo licitatório tradicional.
 Entretanto,  as informações constantes do cadastro de pagamento dos servidores passaram a ser uma commodities cujo valor  no mercado é maior que o  preço que o Estado teria de pagar. Consequentemente, estamos diante de uma despesa que por questões de mercado vira receita de capital nos termos da Lei 4.320/64.
 Esta característica tem levado alguns órgãos de controle a fazer exigências idênticas ao processamento das despesas esquecendo que, no caso, trata-se da arrecadação de uma receita e, por isso, deve seguir ritual diferente.
 Essa questão foi tratada pelo Plenário do TCU conforme Acórdão n° 3042/2008 que teve como Relator o Ministro Augusto Nardes e concluiu que tal “poder” de contratar, por gerar receitas, é um ativo especial intangível para o ente público. Pelo Acórdão verifica-se que o direito de o ente público contratar instituições financeiras para prestar serviços financeiros necessários à consecução de suas atividades de auto-administração e implementação de ações governamentais pode ser considerado um ativo especial intangível e, nesta condição, pode ser ofertada sua exploração econômico-financeira ao mercado, por meio de licitação. 
No que se refere à alienação desse ativo especial intangível podemos observar diversas questões que sempre levam os administradores públicos a questionamentos por parte das Procuradorias, do Ministério Público e dos Tribunais de Contas relacionados com a aplicação do poder discricionário.
Na definição do poder discricionário sempre encontramos, no âmbito do setor público, dois tipos de opinião, a saber:
(a) dos que acreditam que o poder discricionário seja aquele conferido por lei ao administrador público para que, nos limites nela previstos e com certa parcela de liberdade, adote, no caso concreto, a solução mais adequada para satisfação do interesse público;
(b) dos que acreditam ser decorrente do exercício livre da autoridade de que o administrador público, segundo seu arbítrio, se acha investido.
Este comentário vem a propósito da alienação da folha de pagamento do Estado do Rio de Janeiro e de situação inusitada vivida pelo titular deste Blog. Exatamente ontem,  sexta feira 13 tivemos que “enfrentar” os Gerentes de Conta do Banco vencedor da licitação no Estado do Rio de Janeiro.  Usamos o termo “enfrentar” porque, como os leitores podem imaginar,  ocorreram diversas tentativas de “convencimento”  para não usar o direito de portabilidade e transferir minha conta para o referido banco.  Imaginei que deviam estar precisando “fechar” sua meta de produção e, neste sentido, ofereceram diversos benefícios diretos e indiretos.
Disse-lhes que não pretendia mudar de Banco por uma questão de comodidade que foi o exato motivo pela qual o Ministério Público, o Tribunal de Contas e a Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro, escolheram para permanecer no Banco anterior.
O assunto esteve nas páginas dos jornais e segundo esses mesmos periódicos o argumento do representante do Ministério Público do ERJ foi o da comodidade gerada para os servidores com a decisão de não impor aos servidores a transferência de banco. Da forma como os jornais do Rio de Janeiro colocaram o problema, após terem ouvido alguns “especialistas” em Direito Administrativo, fica parecendo que a contratação direta, por dispensa ou inexigibilidade de licitação, representa uma ação contrária a legislação vigente.
Este fato leva ao estudo dos fatores exigidos para a aplicação do poder discricionário sendo que um desses fatores corresponde ao aspecto da legalidade do exercício desse poder e que consiste na adequação da conduta escolhida pelo agente à finalidade que a lei expressa. Entretanto, a liberdade que a lei dá ao administrador para escolher a melhor opção não pode justificar o desvio de poder.
Outro fator é a verificação dos motivos determinantes da conduta. Se o agente não permite o exame dos fundamentos de fato e de direito que mobilizaram a decisão em certas situações em que seja necessária a sua averiguação, haverá, no mínimo, a fundada suspeita de má utilização do poder discricionário e desvio de finalidade.
Nos esclarecimentos prestados à imprensa  sua Excelência Procurador Geral de Justiça informou sobre a comodidade dos funcionários como um dos motivos que levou o Ministério Público a dispensar de licitação e contratar diretamente o atual prestador dos serviços de pagamento da folha de seus servidores. Acredita-se que os demais órgãos tenham utilizado a mesma justificativa embora não tenha expressado tal opinião.
No lugar de criticar a decisão do Senhor Procurador Geral seria bom lembrar aos “especialistas” consultados pela imprensa a necessidade de estabelecer um juízo de valor positivo sobre a eficácia da regulamentação jurídica no que se refere ao“equilíbrio aceitável entre a realização dos seus objetivos, por um lado, e a quantidade e a qualidade de conseqüências não desejadas, por outro lado” (MIERS e PAGE: 1990 (1)). Na realidade, “se a lei é um ato finalístico, também interessa saber se os efeitos queridos pelo legislador correspondem àqueles que os resultados deixam entrever” (CANOTILHO: 1987 (2) ).
Certamente o setor público seria bem diferente se na fundamentação de seus atos, suas exigências e recomendações os órgãos de controle determinassem estudos com o fito de identificar, claramente, os objetivos de qualquer  regulação. Tais estudos, para desespero dos oportunistas,  teriam como foco a avaliação do grau de afastamento entre a “Law in the books” e a “Law in action”, pondo em relevo o complexo problema da interpretação do pensamento legislativo  que deve ser objeto de análise rigorosa.
 Quando o LIMPE vira LIMPEC.
Tal justificativa permitirá que, no futuro, os administradores públicos optem pela inclusão no processo decisório do principio da comodidade a ser acrescido aos demais princípios da Legalidade, Impessoalidade, Moralidade, Publicidade e Eficiência (LIMPE). Com isso surgirá o LIMPEC, permitindo, deste modo, a renovação dos atuais contratos por meio de contratação direta em face da subjetividade do termo comodidade.
Com isto estamos de pleno acordo e, por tal razão, resolvemos optar para não ficar mudando de banco em função desse processo de escolha que, certamente, pode atender a todos os princípios constitucionais implícitos, mas não atende ao principio explicito da comodidade.
Para aqueles que gostam de estatísticas vamos fazer a seguinte conta:  se a cada três anos os governos resolverem realizar nova licitação para a folha de pagamento e, em cada uma delas, tiver um banco vencedor diferente, podemos constatar que o servidor ativo, durante seus trinta e cinco anos de serviço, terá passado por, aproximadamente, 12 bancos e, paradoxalmente, por 8 Governadores, Prefeitos ou Presidentes.
Melhor do que discutir sobre o poder discricionário e se a licitação deve ou não ser por contratação direta, seria interessante incluir na pauta de discussões, os seguintes temas
(a) até onde os governos tem o “direito” de “vender” os dados do cadastro do funcionário, como por exemplo, seu nome, endereço, CPF e, pior que  isso, o detalhamento de seu contra-cheque.
(b ) Até onde a alienação desse ativo informacional (cadastro) dos servidores não representaria a prática de um esbulho possessório,  embora sem violência, em que pese o Código Civil estabelecer no artigo 1196 que “considera-se possuidor todoaquele que tem de fato o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade” principalmente em decorrência da obtenção de vantagem financeira por parte do Estado alienante.
(c) Sendo a informação um ativo com valor de mercado e, portanto, uma“commodities” não seria o caso do servidor ter participação no produto dessa venda.
MIERS, David R. & PAGE, Allan C. Legislation, Sweet & Maxwell, London, 1990, p. 212.
CANOTILHO, Jose Joaquim Gomes. “Relatório sobre programa, conteúdos e métodos de um curso de Teoria da Legislação”, separata do Vol. LXIII (1987) do Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, p. 5.
Fonte: Blog do Prof. Lino de Castro

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